quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O céu é pura utopia

Este sermão foi pregado no dia 03/11/2010 para a prova de homilética. Clicando aqui você faz o download do texto completo, com indicações dos slides.
Preciso fazer um ajuste melhor no texto. Em conversa com algumas pessoas, percebi que o fato dos saduceus não acreditarem na ressurreição - apesar disso estar escrito no texto - não estava muito bem enfatizado. Então, quando digo "o ponto de vista dos saduceus a respeito da ressurreição", me refiro à forma como eles entenderiam a ressurreição se acreditassem nela.
Boa leitura!


Quando eu era menino pequeno, sempre fui muito curioso. E impressionado com algumas imagens da TV, travei o seguinte diálogo com a minha avó:
- Vó, quando a gente morre, o que acontece com a gente?
- A gente vai para o céu, meu filho.
- E o que tem lá no céu?
- Oxê! Não sei. Mas deve ter cabra igual tinha lá no Maranhão... Não esse tipo de cabra que você está pensando. O outro.
Aquilo ficou na minha cabeça e fiquei pensando: O céu é lá em cima. Para que as cabras fiquem lá em cima, elas precisariam ter asa. Mas cabra não tem asa! Já sei! Tem o céu, com as cabras, mas também tem um chão-no-céu para que as cabras não caiam e tenham o que comer.
Alguns anos mais tarde eu fiquei muito surpreso quando percebi que o meu céu sem as cabras é igual ao Desktop do meu computador!

Eu me lembrei dessa história no exato momento em que li o texto de hoje pela primeira vez. Talvez porque o texto e esta história tenham algo de semelhante. Em ambas nós temos duas personagens e uma discussão a respeito do que acontecerá após a morte – afinal, só os mortos ressuscitam! A diferença é que em uma nós temos um garoto de quatro anos e sua avó e na outra nós temos duas figuras bíblicas: Jesus e os saduceus. Acredito que para entender o texto de hoje é interessante conhecer um pouco das suas personagens. Não me refiro a minha avó ou a mim, mas sim de Jesus e dos saduceus.

Diferente de uma criança suburbana de quatro anos, os saduceus eram homens ricos, que andavam pelas ruas de Jerusalém ostentando seus trajes elegantes e a sua privilegiada posição de magistrado judeu com relações amigáveis ao império romano. Chamo aos saduceus de magistrados, porque eles compunham o sinédrio: uma espécie de tribu-nal judeu. Talvez por isso fossem tão aplicados à lei escrita e talvez por isso também tenham usado de um recurso retórico, muito comum nos tribunais da época, que pretende reduzir ao absurdo o argumento do oponente. Curioso é que Lucas, quando fala a respeito da fé dos saduceus, prefere descrevê-la de forma negativa, indicando sempre o que eles não acreditam. No texto que lemos, a não-crença na ressurreição é uma das primeiras coisas a serem ditas.

Diferente da minha avó – ou talvez nem tanto – nós temos Jesus. O pregador nazareno, que anunciava pelo seu caminho um tal de Reino de Deus e a crença na ressurreição. Na passagem que lemos, Jesus é posto na berlinda. Fariseus, escribas, saduceus e outros tantos estão questionando a sua autoridade, a sua relação com o Império Roma-no, a sua ascendência – se é ou não é davídica – e a respeito da crença na ressurreição. Até aqui, todos falharam. Restava então aos mestres da retórica e especialistas da lei – os saduceus – a responsabilidade de armar uma pergun-ta tão ardilosa que Jesus não saberia como responder.

Da pergunta dos saduceus – ainda que eles não acreditem na ressurreição – e da resposta de Jesus, nós podemos extrair dois pontos de vista sobre a ressurreição. O ponto de vista dos saduceus e o ponto de vista de Jesus.

O primeiro ponto de vista sobre a ressurreição que consideraremos é o dos saduceus:

A hipótese levantada pelos saduceus está apoiada na lei do levirato. De acordo com esta lei, o homem deveria tomar a viúva do seu irmão como esposa e suscitar-lhe descendência. Ainda que com cer-tos níveis de machismo, esta lei, que deveria assegurar o mínimo de direitos à mulher, é pervertida de tal forma que a mulher passa a ser vista somente como um objeto de procriação. Não se questiona o fato destes sete irmãos terem usufruído da sua feminilidade, dos seus longos anos e dos seus bens sem, no en-tanto, conceder-lhe um filho. A idéia da mulher que tira a sandália e cospe na cara do seu cunhado passa longe deste texto. Por isso a pergunta “na ressurreição, de qual deles será a mulher” tão somente reforça esta estrutura onde a mulher é tratada como objeto a ser possuído. E o pior: No ponto de vista dos saduceus, esta mesma estrutura social seria repetida “na ressurreição”. Uma conclusão lógica, afinal de contas, esta estrutura social os beneficia!

A sociedade de hoje ainda cultiva estes estigmas. O lugar da mulher na sociedade mundial ain-da passa por um processo de conquista diária. No Brasil, as mulheres ainda ganham menos que os homens; são elas as grandes vítimas das brigas conjugais, do assédio sexual, da maldita agressão chamada estupro. E a Igreja, que deveria ter uma atitude profética frente a essas situações, não poucas vezes as legitima. Afinal, quem nunca ouviu um irmão dizer que “a mulher que usa determinado tipo de roupa é, em parte, culpada pelo assédio que sofre”? Quando não é isso, olha com desdém para os movimentos que militam pelos direitos femininos. A nossa omissão ao não questionar ou reproduzir esta estrutura social, me leva a crer que é isso que esperamos na ressurreição.

Ao percerber a situação da mulher, os olhos se abrem também para as tantas outras maiorias si-lenciadas pela falsa mensagem que diz isso tudo ser natural. “É assim que as coisas funcionam”, “Sempre foi e sempre será assim” é o que alguns podem dizer. Porém, a cristã e o cristão quando olha o futuro à partir do agora percebe que esta estrutura pode ser comum, mas não é natural. Que me respondam então as mulheres: É assim que vocês esperam viver na ressurreição? Uma eterna repetição do hoje? Que me respondam os seminaristas, os pastores acadêmicos, os professores. Que me respondam todas aquelas almas sufocadas pela mão áspera da opressão; que se sentem alienadas do seu destino e o vêem dirigido por déspotas que só conseguem lhes prometer um abacaxi em uma feira. É para viver tudo isso de novo que desejamos ressuscitar? Pois eu digo à vocês: Este foi o desejo dos saduceus. E este é o desejo dos modernos-saduceus hoje.

Agora que conhecemos o ponto de vista dos saduceus, chegou a hora de conhecer o ponto de vista de Jesus a respeito da ressurreição.

Quando Jesus fala em “mundo”, a palavra grega utilizada por Lucas é “Aionos” que também po-de significar Era. Jesus está fazendo uma distinção entre esta Era – a dos saduceus - e uma Nova Era. Em contraposição à estrutura sustentada pelos saduceus, onde existem pessoas que são donas do corpo das ou-tras, na era vindoura isso não acontece, pois todos são como anjos, filho da mesma ressurreição. Com isso, Jesus não está falando de impossibilidades sexuais. Ele está falando de relacionamento. Neste novo aéon, a sociedade será organizada de tal maneira que não haverá relações de poder; o homem não será sobre  a sua mulher e vice-versa. O ser-humano voltará à velha prancheta, quando Eu e o Outro nos víamos como iguais. Parece até uma utopia, não é?

Se observarmos o presente, nós podemos afirmar com toda certeza que esta “nova era” ainda não chegou. Mas já podemos assistir ao cumprimento de algumas profecias... e das mais utópicas. O leão ainda não dorme com o cordeiro, mas mais de 5 milhões de brasileiros estão cursando a faculdade – entre eles, eu e você. A mulher ainda não tem os mesmos privilégios que o homem, mas no aniversário de 78 anos do voto feminino, podemos comemorar a vitória nas urnas da primeira mulher presidente do país. O cego que grita “Jesus filho de Davi, tenha compaixão de mim”, na sarjeta, ainda não tem as mesmas con-dições de vida do saduceu. Mas vivemos em um país que está acabando com a miséria. São promessas a-çucaradas com utopia, que estão timidamente se cumprindo.

Este testemunho serve para nos dar esperança. Esperança para seguir lutando em prol do Reinado de Deus. O cristão e a cristã são pedreiros, arquitetos  e serventes na construção do lugar das nossas utopias. Nós somos co-criadores, em Cristo, desse mundo novo. Por isso, não é errado afirmar que esta ressurreição também acontece hoje! Acontece quando a empregada é tratada com a mesma dignidade do patrão; quando o Gari ou o pedreiro podem entrar e comprar no mesmo shopping que ele limpou ou construiu; quando o trabalhador tem condições de usufruir do bem que produziu. Do ponto de vista de Jesus, os filhos da ressurreição são filhos desta alternativa de Reino de Deus.

Hoje fomos apresentados a dois pontos de vista que pretendem responder como será o mundo depois da ressurreição: o dos saduceus – que imaginam o céu como uma repetição desta estrutura social – e o de Jesus – que promete a quebra de paradigmas sociais. Mas afinal de contas, como será este lugar prometido por Jesus?

Leonardo Boff diz que diante do céu, deveríamos calar.
Mas eu não posso terminar este sermão calado, sem falar do céu. Após três anos de faculdade, é com muito orgulho que eu posso dizer que a minha avó é melhor teóloga do que eu. O que eu tive de ler em vários livros, ela me respondeu com a singeleza de quem viveu na roça: O céu é uma terra cheia de cabras. O céu, a vida após a morte, a era vindoura, seja qual for o nome que você der, é com certeza o cumprimento de todas as utopias humanas. Hoje nós vimos apenas algumas delas. Tenho certeza que no seu coração ardem muitas outras utopias. Tenho certeza que no seu coração há um pedacinho do céu batendo, gemendo, pulsando, querendo se realizar fora do peito. Dê essa chance para si mesmo e para si mesma e construa o lugar das suas utopias. Construa hoje um pedacinho do céu

Que Deus nos ajude a ser arquitetos, pedreiras e serventes desta admirável utopia.

24º Domingo depois de Pentecostes (Ano C)

3 comentários:

Gustavo disse...

é complicado fazer um sermão com esta concepção de Reino de Deus... ela é questionada desde o final do século XIX... mas a TdL a retomou... fazer oq?

Unknown disse...

Oi Gustavo! Obrigado por comentar!

Acho que toda concepção de Reino de Deus ou de vida após a morte é complicada. Afinal, nenhum teólogo morreu e voltou para contar.

De qualquer forma, eu fico me perguntando como Isaías escreveria o capítulo 11 hoje. Como seria a Ramo de Jessé?

Unknown disse...

Obrigada amigo por seu sermão, especialmente por ter tido a sensibilidade de perceber e comentar a situação da mulher de ontem e de hoje. Confesso que preguei o mesmo texto e apesar de ter focado na esperança de um mundo melhor, não tinha atentado para a questão da mulher especificamente. Valeu! Que esse utopos (não lugar ou bom lugar) oriente nossos passos e nos torne construtores de uma terra toda habitada permeada por laços de amor e ternura (oikoumene).
Amo-te amigo,
Dilene