segunda-feira, 13 de junho de 2011

Amor é fogo

Leia Atos 2.1-21

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Algumas textos inevitavelmente não conseguem dizer tudo aquilo que as palavras dizem. Nestes casos parece que atrás de cada palavra há um segredo, um mistério escondido e que só o coração e um olhar atento é capaz de encontrá-lo. É o caso deste belíssimo soneto de Camões. “Amor é fogo que arde sem se ver”... E é o caso desse texto que nós lemos. Ele oferece uma série de símbolos – fogo, vento, a palavra – em uma situação que nos chama a atenção por ser incomum: pessoas iletradas falando línguas de outras nacionalidades.Em textos coloridos como este, devemos tomar o devido cuidado para que não concentremos nosso olhar em apenas um primas, mas que se possa olhar a pintura por completo.

Olhando o texto desta maneira, vamos identificar que além da descida do Espírito Santo, Lucas quer narrar o nascimento da Igreja. Mas um nascimento que exige alguns pré-requisitos, algumas mudanças chave no caráter e na cultura dos discípulos e discípulas que seriam determinantes na sua missão de proclamar o evangelho.

A primeira mudança é a quebra com preconceitos.


O judeu não era muito afeito à estrangeiros. Em outras palavras, a cultura ritualística dos judeus os tornavam xenófobos; tinham medo de que no contato com o estrangeiro pudessem se tornar impuros! E, no entanto Lucas começa seu texto mencionando uma série de regiões do mundo conhecido de então. Pessoas do mundo inteiro – estrangeiras portanto – foram testemunhas do que aconteceu naquele dia de pentecostes e as primeiras a se converterem ao evangelho.

A gente fala dos judeus, mas você já parou para pensar no quanto a nossa sociedade brasileira ainda é preconceituosa? Em uma aula de escola dominical com os juvenis, perguntei para eles quem sofria preconceito na escola. Todos falaram ao mesmo tempo e não se limitaram apenas à escola: o gordinho,o negro, o magrinho, o homoafetivo, o que usa óculos, o boliviano, o pobre, a mulher, o deficiente físico... foi uma lista sem tamanho. Sabe o que é triste em tudo isso? Sem nenhuma exceção – se desconsiderarmos o menino que usa óculos – a Igreja, em sua história, esteve envolvida sendo até promotora do preconceito contra essas pessoas. E hoje, quando tem a oportunidade de tomar uma atitude profética contra o preconceito e a discriminação, ela se omite com medo... Fobia dos diferentes.

A palavra do Senhor hoje nos convoca a quebrar esta corrente de preconceitos e discriminações. Se o verdadeiro amor lança fora todo medo e o amor é o primeiro fruto do Espírito, então é em nome do amor e na impulsão do Espírito Santo que a Igreja deve militar contra a superação de todo medo, de toda fobia de quem é estrangeiro, de quem é diferente de nós. Essas pessoas chamadas de pecadoras, de quem desviamos o olhar é que devem ser, assim como foram os impuros estrangeiros naquela manhã de pentecostes, alvos do anúncio da boa nova!

Mas para anunciar esta Boa Nova, outro requisito é necessário: Falar a mesma língua.


Teólogos e Teólogas tenta explicar este fenômeno. E o fazem das mais diferentes formas possíveis. Mas se esquecem de atentar para o simples fato de que, naquele momento, não importa de onde você tenha vindo, todo mundo se entendia. Não fosse essa Babel às avessas, aqueles estrangeiros nem sequer teriam sido atraídos para as santas palavras proclamadas naquela manhã de pentecostes.

O grande slogan cristão da década de 80 foi “Cristo é a Resposta”. Alguém me disse uma vez que o Snoopy – o cachorrinho do Charlie Brown – apareceu em uma tirinha segurando um cartaz que dizia: “Mas qual é a pergunta?”. Os cristãos, como é de se imaginar, não receberam muito bem a crítica feita pelo cachorro. Mas aquele cartaz reproduz bem o espírito desta época. Quais são as questões que motivam a vida do jovem hoje? Fazer 18, tirar a carta e concluir a faculdade? Quais são as questões que motivam a vida do adulto? Trabalhar, casar, ter filhos e pagar as dívidas?

Não. A vida é muito além dessas pequenezas. E para falar a língua da criança, do jovem, do adulto, da mulher, do negro, do pobre é preciso saber quais são as questões que motivam a sua vida! O que é importante de fato ou não. Falar a língua do jovem, muito mais do que usar gírias e outros maneirismos, é compreender a dor de um amor juvenil ou o quanto é importante ir no shopping sexta à noite. Falar a língua do adulto é saber o alívio que dá quando se ouve, de madrugada, o barulho do trinco da porta que diz “meu filho/a está de volta em casa”. Falar a língua da criança é saber o quanto somos importantes para ela e o que significa o seu pequeno mundo de fantasia. Quais são suas questões? O que lhes motiva a vida? Eu não sei. Mas só tem um jeito de descobrir...

E é através da terceira mudança operada nos discípulos através do Espírito Santo: A inclusão.


Pedro – o pescador impulsivo – quando vê que seus amigos estão sendo tomados por bêbados, levanta-se, assume a postura de orador, inicia seu sermão e quando faz uma citação da Bíblia... ele faz tudo errado. Tudo bem, não tudo – estou sendo malvado com Pedro – mas algumas coisas chaves estão diferentes no texto de Joel. No finalzinho Pedro diz “Meus servos e minhas servas” quando o original diz apenas servos e servas. Parece um detalhe pequeno, mas em Joel os servos e servas ainda estão sob o domínio de um senhor terrestre. Em Pedro os servos e servas estão sob o domínio do Senhor todo amor e misericórdia. E assim o texto de Joel que é sobremaneira inclusivo – inclui crianças, jovens e adultos/velho – torna-se mais inclusivo na boca de Pedro, que liberta os servos e os coloca como profetas.

Peraí? Crianças profetizando? Por incrível que pareça, é justamente isso. A criança de rua hoje é profetisa de sua própria situação, denunciando a injustiça social a que está submetida. Não é justo que algumas tenham direito a escola e um lar feliz enquanto para outras o crime e as drogas são as únicas opções. Por mais que os jovens de hoje forcem a vista para vislumbrar o futuro, a fumaça do mundo turva as vistas. O consumo excessivo de drogas, o sexo irresponsável, a apatia, a omissão e a monotonia tem impedido estes jovens de vislumbrar um mundo diferente da mesma forma que tem tirado o sono dos velhos, que tornam-se incapazes de sonhar com o amanhã.


A igreja oferece, por sua vez, um espaço de resistência a tudo isto por meio da inclusão. Aqui a criança tem a possibilidade de sentir-se parte de um grupo que a aceita e que pode ajudá-la a superar os traumas que a rua ou os próprios pais lhe causaram. A partir da inclusão, pesadelos podem ser transformados em belos sonhos, utopias e esperanças que serão construídas à partir do trabalho dedicado dos jovens que não apenas sonharão, mas verão dias melhores; que muito mais do que cuidar do próprio futuro, cuidarão do futuro da criação. O médico, o advogado e o músico não o são para si, mas para a saúde, a justiça e a liberdade do outro.

Relembrando...
Quebra de preconceitos, nova linguagem e inclusão são transform-ações provocadas pelo Espírito e que estão descritas ali no texto... Nas entrelinhas.

Falando em entrelinhas e Espírito, me lembrei novamente do Soneto de Camões. Pesquisando na Internet, descobri um detalhe interessante. Não sei se é verdade, mas me sinto muito inclinado a pensar que sim. Disseram que o texto de Camões fora inspirado em I Coríntios 13, quando Paulo fala do Caminho do Amor. Isso todo mundo já imaginava, mas o que me surpreendeu realmente foi que a Vida e a Paixão de Cristo também estavam presentes na inspiração deste tão belo soneto.
Para concluir este sermão, então, gostaria ler novamente o Soneto, observando por trás das palavras o segredo do amor de Cristo:

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Luís Vaz de Camões

Que o vento do Espírito possa arejar as nossas vidas, transformar os nossos relacionamentos e re-velar o sacramento escondido nas palavras. Amém


Imagem: http://www.churchforum.org/arte/coleccion.htm?q=Arte/coleccion.htm

Um comentário:

Luis disse...

Esse lance do amor é muito louco. Parece que não dá para descrever em palavras. Rubem Alves diz que nosso mundo é do tamanho do nosso vocabulário. O meu ainda é muito pequeno para tentar falar sobre isso.
Parabéns mano, você tem o dom de combinar vocábulos, palavras e expressões, fazendo com que elas mexam conosco.