domingo, 20 de junho de 2010

Toda história tem mais de um ponto de vista

E, quando viu a Jesus, prostrou-se diante dele, exclamando, e dizendo com grande voz: Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Peço-te que não me atormentes.
Lucas 8.26-39
Toda história tem mais de um ponto de vista. Outro dia, assisti a um filme chamado de “Ponto de vista”, que tratava justamente do assunto. Não é um filme lá muito bom, porque você tem a impressão de estar assistindo ao mesmo filme oito vezes seguidas. Mas é interessante como ele comprova, justamente, essa idéia de que, em se tratando do mesmo fato, cada olho tem uma história para contar.

O texto que nos foi reservado para hoje é uma história muito bem contada pelo evangelista Lucas. Imagino que ele tivesse muita coisa pra contar, mas pouca tinta e papiro (e, cá entre nós, talvez fosse até vítima da censura romana). Justo por isso, cada detalhe dessa história tem um significado muito profundo. Gerasa – que é onde se passa nossa história –, por exemplo, é uma aldeia que ficava na fronteira com a Galiléia. Era uma cidade de não-judeus, fortemente influenciada pela cultura greco-romana, que era a cultura do império que escravizava toda aquela terra. A fronteira além Galiléia não era um lugar muito interessantes para os judeus, dado que as pessoas lá eram “impuras”, segundo a cultura judaica, por causa das suas práticas idólatras e dos costumes alimentares.

Aproveitando a idéia de que “Toda história tem mais de um ponto de vista”, vamos estudar este texto sob três pontos de vistas diferentes: o dos discípulos, o do endemoninhado e o  dos moradores de Gerasa.

Comecemos pelo personagem que mais aparece na história: o endemoninhado.

A história descreve um homem alienado, alheio à vida de sua cidade. Sua dignidade lhe foi tirada e ele já não podia mais morar entre os seus irmãos. Era um impuro, que vivia à margem da sociedade. Ele não usava roupas e, provavelmente, era uma pessoa violenta.

Histórias como a desse homem se repetem dia após dia em nossas calçadas, em nossas praças, nas periferias e nos centros das cidades. Ainda que os nossos olhos se curvem e os nossos narizes se fechem, eles estão lá. Vivendo à margem da sociedade. Suas roupas são trapos e suas mãos são impuras para muitos de nós.

A Bíblia fala que nele habitava uma legião de demônios. Essa é uma clara referência ao exército romano. Lucas está querendo dizer que os demônios dentro dele passavam da conta de 6.000. Eram vozes internas, que lhe davam a impressão de falso poder e o conduziam para lugares despovoados.

Vendo essa descrição, me pergunto quem, ou que tipo de pessoa, este homem representaria hoje: os pobres das calçadas, que se conhecem despossuídos de qualquer tipo de poder e que moram no meio dos passos de São Paulo; ou as pessoas que se imaginam poderosas, talvez até acima da lei, e que se isolam em escritórios protegidos por altos arranha-céus?

Bom, independente disso, o fato é que Jesus Cristo, quando entra em contato com essa realidade, transforma a vida daquele homem. Expulsa dele os demônios e lhe devolve a dignidade. A cena seguinte é esse mesmo homem, agora limpo e vestido, aos pés de Jesus.

Com certeza esse homem, agora, estava muito feliz. Mas, e os moradores de Gerasa? Como ficaram?

Eles pareciam estar acostumados com a situação daquele homem. Talvez até se divertissem prendendo o endemoninhado em correntes e vendo-o libertar-se delas. Mas Jesus fez algo que não lhes deixou muito contentes. A expulsão dos demônios resultou na morte de uma manada de porcos, que, além de ser uma mercadoria, também era símbolo do poder Romano e há quem diga que também era objeto de adoração! Os moradores se viram divididos: estavam felizes com a libertação do homem e aterrorizados com a possibilidade, talvez, de perderem outros porcos. O resultado disso? Eles mandam Jesus embora. ->

Refletindo sobre os dias de hoje, chego à conclusão que aceitar aos desafios e a libertação do Evangelho ainda não é fácil. Envolve não apenas mudanças de hábitos morais (não roubar, não matar, não colar na prova, não desobedecer aos pais) ou de rotina (acordar cedo aos domingos para ir à Escola Dominical e não assistir à Fórmula 1). Mas, sim, em ser fiel ao espírito do Evangelho de Cristo: Libertação e Salvação.

E essa fidelidade é tão radical, que no decorrer da vida somos conduzidos a fazer escolhas como fizeram as pessoas de Gadara. Elas tiveram de escolher: ou os seus ídolos, seu prejuízo financeiro e a manutenção da sua vida pacata e indigna ou uma vida livre e digna aos pés de Jesus. Eles escolheram aos porcos. E você? A quem escolheria?

Por fim, o último ponto de vista: O dos discípulos.

É! Embora a história não fale, eles e elas estavam lá! Como alunos que assistem à interessantíssima exposição de seu professor, os discípulos e discípulas ficaram calados e em silêncio, acompanhando tudo sem interferir. Talvez eles e elas estivessem sentados em bancos, assim como vocês, calados e refletindo, em suas mentes efervescentes, sobre tudo o que estava acontecendo. Mas qual seria o tema dessa aula?

Da mesma maneira que Jesus inicia o seu ministério na terra dos judeus, ele inicia na terra dos pagãos. Ou seja, a primeira ação de Jesus é sempre a libertação e a restauração da dignidade na vida. E a ação libertadora era tão cara para Jesus que ele se dispôs a partir para uma terra estranha, enfrentar uma tempestade a bordo de um barquinho... E tudo isso para libertar um único homem da sua condição de opressão!

Em tempos em que se pretende massificar o Evangelho através dos meios de comunicação, o exemplo de Jesus é uma grande lição para nós, metodistas. O Evangelho que pregamos não deve preocupar-se em preencher cadeiras ou adquirir adeptos. Isso é conseqüência de uma boa prática e testemunhos cristãos. O Evangelho que pregamos deve preocupar-se em salvar vidas na urgência do agora, independente do que isso nos custe, e incentivar que outros façam o mesmo. Isso é fazer discípulos.

Na nossa caminhada cristã somos desafiados a repetir esse exercício de hoje em todas as áreas da nossa vida. Ou seja, tentar ver os diversos conflitos e contradições do cotidiano sob vários pontos de vista. Principalmente pelo ponto de vista do outro. Todavia o principal desafio é tentar ver tudo isso com os olhos de Cristo. E assim como ele, levar libertação, dignidade e vida aos cativos.

Que Deus nos ajude.

4º Domingo depois de Pentecotes (Ano C)
Pregado pela primeira vez na Igreja Metodista no Ipiranga/SP – 20 de junho de 2010

Nenhum comentário: