sábado, 20 de fevereiro de 2010

Entre denúncias e tentações

E, acabando o diabo toda a tentação, ausentou-se dele por algum tempo.
Lucas 4.1-13
Na semana que se passou, se estivesse vivo, um grande compositor da música brasileira completaria 100 anos de idade. O compositor de músicas como "Trem das onze", "Saudosa maloca", "Tiro ao álvaro": Adoniram Barbosa.
Eu não sei como você trabalha a questão musical na sua vida. Mas a despeito de qualquer conceituação, é senso comum o estilo crônico com que este autor escrevia seus sambas. Quase como que contando o dia-a-dia do paulistano. Desde os seus desejos mais puros - como o namorado que quer ficar mais um pouquinho na casa da namorada, mas não pode por causa da sua mãe e do trem que vai partir - até alguns mais tristes, denunciando a pobreza e as dores do paulistano no morro - como em "Saudosa maloca", que o cantor tem a sua casa demolida. A beleza das músicas de Adoniram Barbosa estão na sua linguagem, no humor fino e nos temas, que se identificam muito com a vida do paulistano.

Esse jeito de escrever de Adoniram é muito parecido com o do Evangelista Lucas. No seu evangelho, quando desenha os acontecimentos, Lucas nos oferece tantos detalhes que somos transportados para a Palestina do século I. Sentimos a agonia de Jesus, as dúvidas dos discípulos... Nos identificamos com a multidão que ouve admirada os ensinamentos daquele jovem galileu. E por vezes, Lucas faz - ainda que escondido - algumas denúncias, para que quem tem ouvidos, ouça!

No texto em que lemos, Lucas nos oferece a mesma fartura de cores. E nas palavras que utiliza, esconde denúncias para o leitor atento. Nossa intenção hoje é olhar o texto bíblico sujerido pelo lecionário ecumênico e garimpar estas mensagens deixadas pelo evangelista.


40 dias de jejum

É lugar comum comentar que o número quarenta tem grande importância para os Judeus. Quarenta anos eles passaram vagando no deserto, Moisés esteve quarenta dias no monte ouvindo as Leis de Deus, o dilúvio durou quarenta dias e quarenta noites. O número quarenta - ou o período que ele representa - serve de preparação para algo que estava por vir.

No entanto, Lucas nos diz que após este período de quarenta dias, Jesus teve fome. Penso que o número quarenta e a afirmação "teve fome" presentes nesta passagem, podem ter dois significados: O primeiro de preparação para o início do ministério de Jesus. E o segundo que este tempo de preparação para o início do  ministério de Jesus, fez com que ele se identificasse com povo a quem ele veio salvar: Os pobres que passavam fome. Se em uma passagem, Lucas nos mostra Jesus transfigurado, ou com uma pomba dizendo que ele é o filho amado de Deus, em outra passagem Lucas nos mostra que Jesus é homem. Que tem uma ascendência humana, como qualquer um, e que se identifica com o sofrimento dos filhos de Deus.
Desta forma, Jesus sofre a primeira tentação e Lucas faz a primeira denúncia:


Individualismo

Em um ambiente de privações e necessidades, onde a humanidade é oprimida pela falta de comida, pela falta de água (e até pela falta de vergonha), as pessoas são tentadas a tornarem-se individualistas e não pensarem no próximo. É provavel que isso acontecesse na Palestina - e quem sabe até mesmo dentro da comunidade primitiva! Onde pessoas eram levadas a atender o conselho do ditado que diz: "Farinha pouca, meu pirão primeiro". Esta é a primeira denúncia de Lucas: O povo passa fome e não tem ninguém a quem recorrer. Só a si mesmo.
Igualmente o diabo tentou perverter o ministério de Jesus. Não haveria problema algum se Jesus transformasse as pedras em pães. A questão é que Jesus utilizaria do poder que lhe foi dado, para proveito próprio.
Ceder a esta tenção seria acabar com as esperanças de todo o cosmo! À luz de Cristo, hoje somos portavozes da esperança que está presente nele. E com ele devemos aprender. Ele não utilizou do seu poder para proveito próprio. Antes, deu-o ao povo e o ensinou que, repartindo o pão na comunidade, ninguém ficará com fome.
Jesus não cedeu a esta tentação e diz que nem só de Pão vive o homem. Ao individualista, este é um recado. Não é só de pão - que alimenta somente aquele que o come - mas de toda a palavra que sai da boca - que está disponível a todos que a escutam.



Ambição e autoritarismo

Lucas está denunciando aqueles que tentam implantar o reino a força. Os Zelotes, à exemplo dos Macabeu, intentavam tomar o poder de Israel pela força. E assim implantariam a sua ditadura de paz, pregando a liberdade e fazendo das nações pagãs, escravos seus. Por sua vez, os sacerdotes gozavam de grande status social e tinham o bom e o melhor a sua disposição. Eles administravam um templo que deveria servir a comunidade e não explora-la. Os coletores de impostos, judeus como todo o povo, não se preocupavam com a situação dos seus irmãos, e deles extorquiam altas taxas, roubando e desviando para o seu bolso, o dinheiro manchado de sangue dos judeus.

Jesus foi tentado a tomar todo esse reino em suas mãos e mudar toda esta situação. Será que ele implataria também uma ditadura do amor? Por quanto tempo este reino duraria?
Não vamos pensar que o poder poderia subir a cabeça de Jesus. Mas pensemos no preço que isso custaria. Ele teria que se prostar e adorar aquele cujo nome significa "divisor" (diabo).

Ao negar esta tentação, Jesus nos ensina que, ainda que os nossos ideais sejam os mais belos e corretos possíveis, os meios ainda não justificam os fins. Não é a custa da opressão que se "impõe" a paz! Não é através da força e da violência que o reino de Deus se instalará na terra. Quem constrói o Reinado de Deus não é Rei. É o servo!


A fé que aliena

A atitude de tentar a Deus, esconde em si um quietismo alienante que joga sobre os ombros de Deus a responsabilidade da salvação do nosso corpo. Lucas denuncia uma sociedade que, moída, guarda todas as suas esperanças num salvador que somente virá no fim.

Jesus é tentado dessa mesma forma a alienar-se e utilizar a sua fé de forma vulgar. É evidente que temos que confiar nossos passos em Deus. Mas de forma alguma podemos nos insentar da responsabilidade de cuidar por onde andamos.

Jesus não cai nesta tentação. Ele não se deixa iludir e toma sobre si as responsabilidades que lhe são cabíveis. Sendo o sagrado de Deus, ele preferiu andar entre os homens a ser carregado por anjos... Isso porque Jesus sabia que não se deve tentar a Deus. Não se deve colocá-lo em prova a custa de perder-se a fé.

Uma última questão

Este provavelmente foi um período de grande dúvida de Jesus. Se ele foi ao deserto preparar-se para iniciar o seu ministério, e o adversário foi até ele, como se estivesse colocando em dúvida a paternalidade de Cristo, é sinal que Jesus também tinha, no seu íntimo, esta dúvida. Mas ele não caiu na tentação de tentar provar quem ele era. Sua fé estava depositada em Deus. A paternidade de Deus não foi provada nas pedras transformadas em pães, na coroa do Império Romano ou no sobrenatural dos Anjos carregando os seus pés. Foi confirmada quando o diabo - aquele que veio para dividir - teve suas forças esgotadas e se retirou da presença de Jesus.

O amor de Deus não é confirmado em nós por conta da vida de paz que nós temos. Mas quando vencemos o poder que nos tenta, com a ajuda da Palavra de Deus.

O livro de Lucas deixa ainda uma advertência: "o diabo se afastou de Jesus para voltar em tempo oportuno". Sim! Nós seremos tentados novamente. Mas a nossa oração não é para que sejamos tentados. Mas para que não caiamos em tentação.

Que neste período de quaresma, possamos olhar para a nossa vida, como o fizeram Adoniram e Lucas: Vendo nos pequenos versos, a beleza e a tristeza de nossa existência. E que Cristo nos dê a coragem de vencer vivendo entre denúncias e tentações!


Coragem, irmãos! Coragem!


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