sábado, 10 de abril de 2010

Crentes como Tomé*




Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, e ali não puser o dedo, e não puser a mão no seu lado, de modo algum acreditarei.

Leia João 20. 19-31

Toda criança gosta de fazer perguntas. Há uma fase na vida da gente em que tudo precisa ser explicado até aos mínimos detalhes. Quando tinham tempo e paciência, meus avôs costumavam contar algumas histórias para responder minhas insistentes perguntas Eram histórias com personagens clássicos como Boccage, Jorge e seu cavalo mágico; as peripécias de João Grilo... Por mais "adulta" que a história fosse meus avôs a modificavam de forma que ela pudesse oferecer respostas a algumas dessas perguntas, além de um ensinamento moral sempre necessário.

Se você me permite a comparação, e claro que observando o respeito e as proporções históricas, da mesma forma são os evangelhos. Diferente do que a gente pensa, seu intuito não é apenas contar a história de Jesus, mas também instruir a comunidade de fé em suas necessidades. Esta característica está singularmente evidente no evangelho de João.

O Evangelho de João é conhecido como o "evangelho da unidade", justamente porque, ao escrever, o discípulo amado procura promover a unidade entre as primeiras comunidades cristãs, como as iniciadas por Pedro, por Maria Madalena e pelo próprio João. No episódio da ressurreição, por exemplo, no início deste capítulo, é significativo o que aconteceu com cada discípulo. Pedro, ao ver a tumba vazia, volta para casa. João, o que chegou primeiro, mas viu por último, foi o primeiro a crer na ressurreição. Maria, desolada, ficou chorando à porta do sepulcro e foi a primeira a ver o Cristo Ressurreto.

Para ampliar este elenco de personagens, João inclui na sua história a pessoa de Tomé. Um dos discípulos e que não estava presente na primeira vez que Jesus se apresentou ao seu grupo. Enquanto João é o primeiro a crer, Tomé é o último, como se os dois estivessem em contraponto.

Dessa forma fica evidente a divisão em dois blocos do texto: Um representado por João, o crédulo e outra por Tomé, o cético. Porém, se João estava de fato interessado em promover a unidade do corpo de Cristo, porque ele escreveria a história de alguém que duvidou dos amigos, quando da ressurreição? Talvez tenhamos algo a aprender com essas duas personagens.


João e seus amigos crédulos

A tarde caia, calafrios tomava conta dos discípulos que temiam um assalto romano a qualquer instante. Em uma casa totalmente fechada, eles se reúnem. Estão escondidos, esperando talvez por algum sinal que lhes pudesse conferir segurança. Quando então aparece no meio da sala o Cristo, em pé, mostrando o lado e as mãos furadas, dizendo: "Paz seja convosco" (v. 19-20). Eles ignoram completamente as horripilantes chagas de Cristo e se alegram muito em vê-lo! Naquele momento não importa se Cristo realmente morreu ou não, eles não pedem prova disso, ainda que Cristo lhes ofereça. Eles simplesmente se alegram por ver o mestre vivo, diante dos seus olhos!

O evangelho, na maioria das vezes, nos propõe atitudes extraordinárias e até absurdas! E como servos e servas fiéis, atendemos ao chamado divino... Ainda que com dúvidas.

Ao contrário do que pode parecer, é neste momento. Justamente neste momento que em nossos corações brilha a incandescente luz da fé. Ao contrário do que pregam, a fé não é sinônimo de certeza ou o combustível que move a mão de Deus. A Fé é, ainda que sob nuvens de dúvida, a confiança que depositamos em Deus com a qual podemos dizer: Fé em Deus e pé na tábua, numa atitude que deposita a confiança no criador, sem retirar a nossa responsabilidade. Ainda que seja absurdo!

Acredito que justamente por isso Cristo, ao ver a alegria de seus amigos, novamente lhes saúda com a Paz e lhes comissiona a levar esta mesma Paz, como outrora o enviou o Pai, animados pelo Espírito Santo (v. 22). O mesmo Espírito que impulsionou o ministério de Jesus (Lc 4.1,14), o mesmo sopro de Espírito que durante a criação deu vida à humanidade.

 Mas a nossa história não acaba aqui.


Tomé – Aquele que crê com dúvidas.

O versículo 24 começa com uma conjunção adversativa "ora" indicando que haverá uma mudança na história. É quando entra em cena Tomé, que não presenciou nenhuma daquelas coisas.

A sua reação é conhecida de todos: Ele duvida da fantasiosa história contada pelos seus amigos e diz de forma até arrogante: Eu não acreditarei se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, e ali não puser o dedo, e não puser a mão no seu lado.

Sim, ele foi arrogante na reposta que deu aos discípulos. Mas a grande verdade é que ele não estava de todo errado. Todos os outros tiveram uma experiência com o Cristo ressurreto. Ele ainda não! A afirmação de Tomé, na verdade, é um pedido por uma experiência pessoal e singular, se comparada com a dos demais discípulos. Ele não quer acreditar em palavras tão somente. Ele quer ver com os dedos!

Uma semana depois, no oitavo dia (o tempo de uma nova criação), os discípulos estavam novamente reunidos. Mas agora em companhia de Tomé. Jesus volta, repete o ritual e diz diretamente a Tomé: Põe aqui o dedo e vê!

Muita vez, querendo o bem dos nossos irmãos, desejamos que eles passem pela mesma experiência de fé que vivemos. Mas eu te pergunto: Se nem os grãos de areia da praia tem o mesmo tamanho, e nem mesmo as estrelas que vemos brilhantes no céu estão na mesma galáxia, como poderemos impor a nossa experiência de fé como padrão para pessoas que são tão diferentes? Nem mesmo o Cristo ressurreto foi capaz disso. Como se tivesse vindo exclusivamente para atender ao pedido do discípulo incrédulo, ele voltou para que ele tivesse a sua prova. A sua experiência.

E então Jesus completa: Não seja incrédulo, mas sim crente. Há um jogo de palavras aqui. Cristo respeita a forma de crer de Tomé não pedindo que se torne em um crédulo. E crédulo no sentido daquele que acredita sem questionar. Não. Tomé estava mais para aquele tipo de pessoa que primeiro precisa "ver para crer". Este assunto pode ser melhor descrito nas palavras do Rev. William Barclay:

"Negava-se completamente a dizer que cria quando isso não era verdade. Jamais diria que entendia o que cria quando não entendia, [ou] quando não cria. […] Jamais apaziguaria as dúvidas simulando que elas não existem. Jamais repetiria um credo, como se fosse um papagaio, sem entender o que dizia. Tinha que estar certo, e de que tinha razão." (1974, p. 301302)

Cristo não pede que Tomé mude a sua forma de crer e pensar. Justamente porque a dúvida de Tomé é a virtude que o levaria a verdadeira fé.

"Há mais fé verdadeira em quem insiste em certificar-se, do que naquele que repete tolamente coisas sobre as quais jamais pensou e nas quais sequer crê."

O resultado do seu questionamento é a primeira e mais bela concepção das duas naturezas de Cristo: Senhor meu e Deus meu! E assim Tomé, mesmo sendo o cético, é o primeiro a chamar Jesus, o Cristo, de Deus.

Os exemplos de João e Tomé são muito importantes para nós justamente para que consideremos como está a nossa fé hoje.

Cremos em Deus por conta dos milagres que presenciamos? Em dias em que os milagres estão à venda em cada esquina e em cada canal de TV, uma fé apoiada em milagres é perniciosa, pois ela se assemelha a um monstro devorador que anseia sempre por mais e mais. Quando essa fonte secar o crédulo estará infeliz pelo fim do espetáculo e com a sua fé abalada. O exemplo de João nos ensina a observar os sinais. Milagres na realidade são simplesmente sinais que apontam para outra verdade: Apontam para Cristo.

O quanto crédulo temos sido? Acredito que as pessoas hoje estão mais aptas a aceitarem, e sem questionar, as palavras do "pastor da TV" ou daquele que só te viu uma vez, em algum encontro, e te prometeu mundos e fundos; do que a palavra do "Bom Pastor", que conhece as suas ovelhas pelo nome e está disposto a dar sua vida por elas. O exemplo de Tomé nos ensina a questionar. A perguntar, tal qual uma criança cheia de "porquês", demonstrando nosso empenho em fazer a vontade de Deus.

Antes que se condene esta conduta, vale lembrar que Tomé, segundo o livro de João, foi o autor da frase Vamos nós também, para morrermos com ele quando Jesus se propôs a ir à Betânia, em socorro a família de Lázaro.

A tradição cristã diz que Tomé foi o apóstolo que levou o Evangelho para a Índia. Sua ida pra lá foi como que "a trabalho". Levado como escravo, acabou por trabalhar para um rei com a finalidade de construir-lhe um palácio. Recebeu uma grande soma em dinheiro para realizar tal obra. Mas diz-se que Tomé distribuiu todo o dinheiro entre os pobres. De tempos em tempos o rei mandava chamá-lo para saber como ia o andamento da construção. "Vai bem", dizia ele. Até que o rei desconfiou e foi tirar a cisma. Quando descobriu o que tinha acontecido com seu dinheiro, a princípio ficou furioso, e perguntou: "Onde está o meu palácio". Tomé teria respondido: "Agora o senhor não pode vê-lo, mas o verá um dia na glória". O rei acabou abraçando o Evangelho.

Sobre seus últimos dias, existem várias histórias. Uma que ele teria morrido alvejado por flechas, enquanto orava. Outra, e a que eu mais me afeiçôo, é a de que ele teria sido alvejado por uma lança, tal qual a que feriu Jesus no lado. "Vamos nós também para morrermos com ele" (Jo 11.16).

Após considerar esses fatos, é ainda justo chamar Tomé de cético? De incrédulo?

E a bem aventurança do versículo 29? Estas se referem a nós também, que não vimos e cremos. Mas tão somente porque, antes de nós, homens e mulheres que viram (ou não) e também creram e entregaram a sua vida, a exemplo de Cristo, para que o testemunho deste evangelho chegasse até nós hoje.

Somos felizes sim, e hoje ainda mais, pois sabemos que mesmo nas nossas dúvidas, o Senhor está conosco.

2º Domingo de Páscoa (Ano C)


*Agradeço à equipe de liturgia da Faculdade de Teologia/UMESP, onde este texto foi profundamente comentado. E agradeço especialmente ao Rev. Luiz Carlos Ramos - que considero além de mestre, amigo - que gentilmente me cedeu sua "cozinha" para a elaboração deste sermão.

Um comentário:

Elena disse...

Belo sermão Thiago Amado.
Só agora com o comentário do Jaider, a propósito do seu aniversário, eu fui ler.
Parabéns, duplos!
Me lembrei de um personagem da Corrida Maluca que sempre repetia: "Raios duplos!...[rs]
De jeito nenhum. Só parabéns duplos.
Abraço
Elena